Ettore Scola, o cínico contemporâneo

 


Recentemente, tive o singular privilégio de assistir ao clássico italiano de Ettore Scola, “Feios, Sujos e Malvados”, e posso atestar que se revela um filme de maior profundidade do que, talvez, a princípio se imagine. Ele alcança um efeito hilariamente desconcertante, em grande parte porque nos arremessa, sem hesitação, a um meio grotesco, onde a realidade nos é escancarada sem qualquer filtro.

E por que motivo essa abordagem torna o filme tão incomum? Bem, reside no fato de que a própria experiência de assistir a filmes costuma pressupor todo um verniz civilizacional, inerente àqueles absolutamente impregnados de ideais, contornos e definições, que se desfazem abruptamente diante do cinismo cinematográfico de Scola.

Há um vasto campo de reflexão filosófica a ser explorado a partir do que se depreende de “Feios, Sujos e Malvados”: do cinismo ao nominalismo; destes à visão dionisíaca do mundo, inspirada nos Vedas; até culminar na fenomenologia e, finalmente, na compreensão da essência do cômico.

Fundamentalmente, a concepção de um mundo primevo, onde o plano das ideias e conceitos ainda não se infundiu e as fronteiras delimitadoras típicas da percepção urbana ainda não foram traçadas, nos é exposta de forma crua, sugerindo uma realidade em sua nudez, destituída de qualquer construção ideativa.

Os cínicos, como Antístenes e Diógenes, foram pensadores do período helenístico (a decadência da antiga Grécia) que se insurgiram contra a civilização e ridicularizaram o universo das ideias e conceitos universais de Platão – tão intrinsecamente ligados ao anseio humano por ordem, bem-estar e urbanidade.

Essa rejeição visceral ao plano das ideias lança o homem à sua realidade mais natural, a um tempo em que o homem ainda se percebia como parte de um uno cósmico, e a autopercepção individual (chamada de individuação) sequer havia sido inculcada.

O mundo para esse ser primitivo é um estado de impulsos primários, de vontades despojadas de representação simbólica, um domínio onde o 'véu de Maya' ainda não havia sido estendido sobre a consciência. E, por conseguinte, um mundo imune a qualquer ilusão ideativa.

Daí deflui o terror e a repulsa que acometem as pessoas mais apolíneas, asseadas, urbanas e saturadas de inculcamentos – sejam eles dogmáticos, ideológicos, conceituais, culturais ou morais – quando confrontadas com o grotesco mundo da realidade desvelada; em suma, o mundo dionisíaco.

Dioniso representava para os gregos o semideus, filho bastardo de Zeus, o rei dos deuses. Ele fora costurado à coxa paterna para que sua madrasta Hera não suspeitasse das infidelidades do pai. Em outras palavras, Dioniso personifica os impulsos humanos que são reprimidos e relegados ao esquecimento a fim de edificar um mundo de aparências: um mundo apolíneo.

Apolo, que para Nietzsche e Freud simboliza a força antagônica a Dioniso, é o deus solar, aquele que estende sobre o ideário humano o que os Vedas, a grande carta mística Indiana, denominam “Véu de Maya”.

Portanto, quando um homem urbano, civilizado e asseado se acomoda na poltrona, tomando sua Coca-cola e comendo uma pizza diante de uma tela de cinema ou de um aparelho de televisão para assistir a “Feios, Sujos e Malvados”, experimenta um horror natural de se ver atirado à realidade despida de qualquer filtro ideativo.

E observe-se que sempre haverá quem interprete esse filme como uma espécie de “denúncia” social; o que, a meu ver, talvez não seja a lente mais apropriada para compreendê-lo. Isso porque a simples emoção, o mero sentimento de injustiça, decorrente de uma visão crítica alicerçada no ideário humanista, implicaria necessariamente a adoção de uma forma de mundo ideativa, precisamente o que o filme se atreve a negar.

E para corroborar minha tese, enfatizo o fato de que os personagens não são meramente “feios” e “sujos”. Eles também são “malvados”, o que expressa uma completa ausência de intenção em vitimizá-los sob qualquer pretexto.

A menos, naturalmente, que o leitor adote uma perspectiva hobbesiana ou mesmo lockeana, que pretenda associar a gênese da maldade do homem primitivo, respectivamente, à sua natureza intrínseca ou às circunstâncias que o cercam, parece-me frágil a alegação de que o filme de Scola se proponha genuinamente a ser uma crítica social.

Prefiro contemplar essa obra como uma experiência primitiva, quase fenomenológica. Em outras palavras, vivenciar o ser lançado à realidade da ausência de conceitos e testemunhar o ser em seu estado pré-civilizacional.

E o curioso resultado desse contraste entre o espectador – no ápice de um processo refinado de apuração dos conceitos – e a película – no extremo oposto da realidade embrionária da sociedade – culmina no cômico.

Minha compreensão da origem lógica do sentido do cômico evoluiu significativamente a partir da leitura de “O Nascimento da Tragédia” de Friedrich Nietzsche. Segundo o autor, o sátiro grego, ao integrar o coro da tragédia clássica, irrompia no palco com a voz da realidade desvelada, do dionisíaco.

Em essência, o ridículo emerge do abissal contraste entre a expectativa do público, impregnado pelo ideário apolíneo, e os ataques frontais da realidade dionisíaca, expondo as inúmeras camadas ilusórias que a civilização adicionou à nossa percepção da existência.

Possivelmente, o grande objeto de ridículo ao longo dessa narrativa grotesca seja o próprio espectador, que se vê lançado ao solo da realidade primeva, precursora de todas as ideias – estas, sim, o verdadeiro alvo da zombaria. Uma cena que talvez ilustre vividamente esse contraste entre nossa noção de “normalidade” e o animalesco de um microuniverso regido por impulsos é aquela em que o patriarca da família introduz uma segunda esposa no casebre.

Nessa insólita situação, enquanto o patriarca se envolve em uma escandalosa disputa com a primeira esposa para justificar a chegada da amante, é sorrateiramente traído pelo assédio de outros homens que compartilham o mesmo espaço; alguns, inclusive, seus próprios filhos, compondo um quadro quase surreal de um conflito conjugal ofuscado por uma traição ainda mais imediata. Como não esboçar um sorriso diante de tal cena? E como não evocar o sátiro dionisíaco ressoando no coro da tragédia humana algo como: “Eis, homens civilizados, a vossa verdadeira essência! Aquela que vós escondeis, costurada às suas coxas”. Rir pra não chorar?


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