Otelo sem fúria

 


    
      

Pensei quatrocentos milhões de vezes se começaria ou não a dividir minhas ideias e opiniões mais pessoais e íntimas a respeito da vida, da arte, da filosofia e da literatura. Ao final de tantas idas e vindas, papéis rabiscados que foram parar no lixo e documentos digitais deletados, eis que acabei sucumbindo a esse ímpeto inexplicável de dividir o que penso com um público ainda em formação, que, confesso, não sei se me inspira a maior estima. Preciso advertir que o tom ácido desse veículo será uma constante. Não é mero acaso que esse blog leva "limão" no nome. 

Mas, o que me pergunto é: de onde, afinal, brota esse desejo irracional de compartilhar minhas reflexões com um mundo que não me inspira grandes considerações? Sei lá. Certamente, mais uma das minhas muitas loucuras. Como escreveu o poeta Caetano: "De perto, ninguém é normal."

E se é pra começar a descascar a banana em cima do mundo, nada melhor do que iniciar evidenciando meu irreparável divórcio com a humanidade através de um “clássico”. Mas, afinal, o que diabos é um clássico?

É uma obra que ressoa no âmago do espírito humano (isso ao menos em teoria).  Talvez o meu espírito seja de outro planeta, e por isso os clássicos me soem tão... terrestres. Nessa postagem, pretendo divagar sobre William Shakespeare, em uma de suas peças mais celebrizadas, "Otelo".

Ao ler "Otelo", duas evidências gritantes saltam aos meus olhos como faróis na neblina: a primeira é: "Meu Deus, como a humanidade consegue ser tão... humana?". A segunda é: "Para o bem ou para o mal, como eu navego em um oceano de diferenças em relação a essa mesma humanidade".

Lamento pelos incautos que não se aventuraram pelas páginas dessa tragédia, mas não pretendo gastar uma mísera linha resumindo-a. Não pretendo fazer desta modesta morada virtual o lóocus por onde cumpro o nobre dever social de agregar pedagogicamente conhecimento e cultura ao público. Para assumir esse desafio, já possuo outro palco, o Amplo Espectro.

Posso afirmar, sem sombra de dúvida, que em minha jornada pessoal já me vi exatamente nas botas dos dois protagonistas: Iago e Otelo. E constato, sem nenhuma surpresa, embora com um quê de resignação debochada, que as reações de ambos espelham, com assustadora precisão, a conduta do homem comum, ao ponto de serem presumidas.

Meu Pai! Como é fácil visualizar todas as almas que cruzaram meu caminho trilhando exatamente as mesmas veredas de Iago (quando preterido naquela promoção que tanto almejava) e de Otelo (quando a semente da desconfiança de infidelidade conjugal é plantada em seu fértil terreno).

   Devo ser, portanto, uma anomalia ambulante, pois nas ocasiões em que me vi em situações análogas, minhas reações flutuaram em órbitas completamente distintas. Ocorre-me agora, não por acaso, a lembrança da distopia de Huxley 'Admirável Mundo Novo', onde a sociedade cultivava valores tão dissonantes dos tradicionais que seus habitantes riam de cenas dramáticas de Shakespeare.

Talvez eu seja um desses seres deslocados no tempo. Mas reconhecer que essas reações são tão triviais a ponto de serem carimbadas como "normais" em nossa sociedade hodierna é justamente o que faz de Shakespeare um clássico; e de mim, um excêntrico – para não dizer “anormal”.

         Naquela fatídica ocasião em que testemunhei seres desprovidos de talento, impulsionados pela pura camaradagem e influência, usurpando uma posição hierárquica que, por direito meritório, seria minha, meu único pensamento foi: "Ah, tá bom! Mais uma mediocridade a alçar patamares mais elevados na hierarquia de nossas instituições funcionalmente quase falidas. Qual surpresa haveria de ter?"

Senti-me ultrajado e injustiçado como Iago? Talvez, sim. A bile pode ter fervido em minhas entranhas? É possível. Mas, aquilo não durou mais do que uma xícara de café. Como de costume, minha proverbial inércia, meu olímpico desinteresse pela vida mundana, meu desprezo pela fauna social, minhas constantes costas voltadas para os holofotes e até mesmo meus outros devaneios que consomem minha rotina, impediram-me de sequer cogitar perder meu valioso tempo urdindo qualquer tipo de vingancinha barata.

E eu enfatizo, nobre leitor: Não foi a virtude que me impediu de tramar mesquinharias contra aqueles que me relegaram. Na verdade, creio que foi uma forma peculiar e requintada de mesquinhez. Sou tão avaro com meu tempo que não me sobra sequer um instante para ser mesquinho com os outros. Guardo a mesquinhez para mim mesmo. E assim sigo, solenemente desprezando o universo – e, cá entre nós, a recíproca cósmica é absolutamente verdadeira.

Já na pele de Otelo, transformo-me em um ser ainda mais alienígena para a compreensão humana. Honestamente, nunca dei a mínima para a remota possibilidade de adultério. A simples ideia de reivindicar propriedade sobre o corpo ou o afeto alheio me soa como uma aberração ontológica. E, portanto, dentro dessa minha perspectiva para lá de singular, o ciúme se revela um sentimento grotesco (para não dizer grosseiro), uma vã tentativa de aprisionar o inaprisionável.

Eu vivo e sou feliz ao lado de uma mulher. E não almejo nada além disso. Nada além da presença. Isso me basta. O que ela faz com seu corpo e seus sentimentos é uma questão estritamente pessoal e, portanto, fora do meu raio de influência. Faz algum sentido eu arrancar os meus cabelos pelo que o outro deseja fazer ou o que outro sente? Para o leitor, eu imagino que faça. Para mim, não faz.

Portanto, não é de se estranhar que quando uma “amiga da onça” tenha vindo insidiosamente levantar falsas suspeitas contra a minha relação de confiança, eu tenha sido o primeiro a arranjar desculpas e suscitar hipóteses que explicassem o mal entendido – para completa surpresa e frustração da fofoqueira em questão. De verdade, eu não estava nem aí.  

E nesse ponto, a minha postura é exortada na própria obra de Shakespeare: "Acautelai-vos, senhor, do ciúme; é um monstro de olhos verdes, que zomba do alimento de que vive. Vive feliz o esposo que, enganado, mais ciente do que passa, não dedica nenhum afeto a quem lhe causa ultraje." (Isso me lembra Aleksadr Púchkin - mas essa é uma digressão que não cabe aqui). 

É claro que, neste ponto, o leitor mais afetado pode retrucar: "Ah! Você se julga um ser superior! Alguém moldado em um barro mais nobre!". O que posso dizer, meu caro? Se por "superior" você entende um indivíduo isolado em seu próprio universo, com uma lente peculiar que o distancia irremediavelmente da massa, amargurado por enxergar nuances que o homem comum ignora, e impotente neste hospício chamado vida... bem, meu caro... então você acertou na mosca: eu sou mesmo "superior". E, confesso, não desejaria essa terrível chaga nem ao meu pior inimigo – caso ele ousasse existir.

Só me resta concluir da seguinte maneira: as histórias mais fascinantes que atormentam a humanidade e que encontraram eco na arte, no cinema, na literatura – quase todas elas – jamais teriam saído do papel se, em vez dos personagens prosaicos que encontramos em cada esquina, estivesse lá eu: o niilista reflexivo, com uma má vontade atávica de me engajar em qualquer empreitada – principalmente em vinganças e picuinhas.

Certamente, se eu encarnasse Iago ou Otelo, Shakespeare teria sua obra terminada pela metade, com uma fala negligente do tipo: "Ah! Deixa pra lá! Não vale a pena". E a tragédia nunca se consumaria. Quem sabe, justamente isso, no final das contas, fosse o mais trágico. 


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