O erotismo feminino em "Os belos dias de Aranjuez" de Wim Wenders
Ernest Hemingway sempre aconselhou
aos novos escritores começar um texto lançando uma verdade direta, contra qual
não caibam contestações. E a verdade que aqui vos lanço é a seguinte:
O brasileiro vem insistentemente
tentando assassinar o erotismo, sobretudo o feminino. Eros vem colocando os
homens dessa geração contra a parede, induzindo emoções e reações díspares. E
não seria absurdo acrescentar que até mesmo as próprias mulheres brasileiras
vêm sendo arrastadas por um turbilhão ideológico que se manifesta de forma
repressora ao erotismo em todas as suas facetas.
Talvez, a questão seja o fato de que
uma imensa massa de pessoa sente-se colocada contra a parede
sempre que o menor sinal de erótico desponta. E o mal estar se intensifica
exponencialmente quando o que é despontado refere-se ao gênero feminino.
É nesse contexto, que eu gostaria de
trazer para essas linhas uma breve análise do filme “Os belos dias de Aranjuez”
de Wim Wenders. Este é um diretor que vem ganhando a minha atenção nesses
últimos anos. Neste filme, Wenders nos recria o estado primevo da
humanidade, como numa alegoria bíblica, em que Adão e Eva se propõem a dialogar
honestamente, num lindo dia de verão, em baixo de um caramanchão, cercado pela
natureza, tendo à mão apenas uma simbólica maçã.
O enredo nos apresenta um escritor que
datilografa as primeiras linhas de uma história, e ela nos é projetada pelo
imaginário desse escritor. E o que é projetado? Um homem e uma mulher, sentados à mesa. Nada mais que isso. Assim, o escritor nos narra: Eles estão dispostos “como
se estivessem fora do tempo.” Isso significa que o diálogo ocorrerá alheio a
qualquer circunstância histórica ou sociológica, o que sugere um diálogo ainda
mais universal e honesto.
E o escritor continua: “Mas isso não
significa que estejam fora da realidade. Talvez seja o contrário.” A partir dessa fala, depreendemos a ideia
de que os contextos humanos, históricos, sociais, atuais, econômicos, geopolíticos,
religiosos, culturais, ao contrário do que se costuma pensar, possam ser formas
de alienação do homem para sua realidade pura, crua, primordial, qual seja a
natureza. Essa natureza mesma a que se encontra o casal disperso em suas
reflexões.
Na primeira parte do filme,
imediatamente após essa construção literária que designa os personagens e a
ausência de qualquer artifício no contexto, proclama-se aberta a conversa
honesta sobre a sexualidade feminina. Ah! Finalmente, lá vamos nós, ingressar
nesse fascinante tema.
O homem começa lançando a clássica
pergunta a respeito de como se sucedeu a primeira vez da mulher, e quem foi o
homem responsável por essa experiência? No entanto, ela frustra a inclinação
maliciosa da pergunta ao responder que sua descoberta não envolveu nenhum
homem. O despertar de sua sexualidade ocorreu de forma solitária, aos dez anos,
enquanto se balançava numa cadeira em um pomar, junto a uma macieira.
A menção a uma idade tão precoce —
dez anos — possivelmente pode causar desconforto nas pessoas que imaginam a
infância como um período alheio aos instintos. Na verdade, essa é uma visão
idílica da infância, que vê na sexualidade uma sujeira que não é inerente a
ela. Ver o sexo como sendo essencialmente sujo vem sendo um sintoma de nossa
cultura. É comum encontrar quem, por diversas influências culturais e sociais,
idealize a pureza feminina e a assexualidade da infância. Essa negação dos
impulsos naturais surge, muitas vezes, pela preferência por uma sensação de conforto
e segurança que nos faz perceber os instintos humanos como uma
"ameaça".
A família da personagem espreitava numa
presença invisível, enquanto a menina experimentava sua primeira excitação.
Assim, ela nos descreve: “Eu no balanço com impulsos cada vez mais livres. Cada
vez mais rápido. E, uma hora, de repente, no ponto culminante, houve um súbito
freio. Uma coisa dentro de mim despertava. Tomava vida graças a esse súbito
freio. Nascia, se abria, explodia... eu me tornava a coisa, ela se tornava eu.
Mas, o que acabava de nascer nesse balanço, eu não senti como ‘meu sexo’, mas
como ‘a origem do mundo’”.
Em seguida, o homem menciona a forma
liberada com que ela conduzia sua vida erótica. Pelo que se depreende do filme, ela não
se firmava numa relação, mas ao contrário, vivia a plenitude de uma sexualidade
livre, desfrutado amores plurais e fora dos padrões de conduta esperados pela sociedade.
Assim, ela nos revela o que só
percebia enquanto contava: Que fazia sexo como quem se vingava. “minhas
vinganças não eram planejadas, premeditadas, preconcebidas. Era um ato de
vingança. Eu sabia e meu cúmplice também. Que felicidade! Que alegria infantil!
Era como se ele e eu, vencendo os obstáculos da vida, tivéssemos dado ao
‘mundo-prisão’ um gesto de desdém; o tivéssemos enganado. Nós dois tínhamos
mostrado algo ao mundo. Nos vingamos dos acontecimentos comuns.”
Ligeiramente desconfortável pela forma desenvolta com que a mulher expressava sua liberdade erótica, o homem sugeriu a malícia; não dela, mas dos seus amantes. Seriam eles os vulgares conquistadores que vislumbramos tão comumente por esse mundo afora?
Todavia, assim ela respondeu: “Nenhum
desses homens tinha esse olhar que dizia ‘quero ter você’, ‘posso ter você’,
‘posso ter todas, você também’. Eles não tinham esses olhos de caçador de aves.
(...) Estava escrito nos olhos deles: ‘essa mulher é inacessível para mim. Oh,
desgraça! Essa mulher está fora de alcance.’ E foi esse olhar de desespero, um
desespero quase incurável, que me abriu para o homem.”
Repare por essa descrição, que não
falamos de sexo como um puro impulso, ou como uma necessidade rasa de se
vangloriar pela conquista. Os homens com quem ela se relacionava não buscavam
satisfazer a vaidade de quem se sente um “colecionador”. Na verdade, eram
homens que sucumbiam aos desejos, mesmo diante da evidência trágica, de que
aquela mulher poderosa estava “fora de alcance”.
Por fim, ela fala da solidão e da
falta que sentia de ter, se apropriar de um único homem. “Onde está a mulher
que não só se declara ‘mulher de um homem’, como também vive como ‘mulher de um
homem’? Como antigamente nos faroestes. Talvez fosse só ficção? Essas mulheres
fictícias no faroeste, nas epopéias medievais, não eram de jeito nenhum, não
são de jeito nenhum submissas aos homens. Não há desejo mais nobre do que o que
as mulheres imaginavam. Viva o outro império! A monarquia da ‘mulher de um
homem’. A monarquia não hereditária, não constitucional, monarquia efêmera, sem
poder nem ser representada, simplesmente imaginada. Mas, imaginada a partir de
uma matéria: a matéria do desejo. Céu e Terra vão desaparecer, mas meu desejo
nunca desaparecerá. Para ser, para encarnar uma rainha assim, eu daria, eu
sacrificaria tudo por tudo. Rainha lavadora de janela. Rainha calçadeira.
Rainha cortadora de cabelo e de barba. Rainha que desfaz seu penteado. Rainha
que esquenta a cama. Rainha que cuida de cavalos. Rainha que tira pulgas do
cachorro. Rainha descascadora de batatas. Rainha que cola a aba de uma xícara.
Rainha que lê em voz alta pela casa.”
Wenders conseguiu expor o tema de
forma dual e para muito além de qualquer sentido moral. Ele desenhou uma mulher
complexa, poderosa e ao mesmo tempo vulnerável. Alguém por quem vale à pena investir
tempo para melhor conhecer.
Ao mesmo tempo em que ela desfruta a
liberdade erótica sem remorsos e com a convicção de quem se vinga do tédio do
cotidiano; no íntimo, a mulher fantasia o romance estável e o poder de ser a
única na vida de um homem. Talvez seja mesmo da natureza humana o chamado
“apetite faustiano”, qual seja, fantasiar aquilo que não se vive. E o curioso é
que mesmo uma vida que se presume vivida mais intensamente, padece dessa mesma
sina psicológica. Mesmo que, no caso, o objeto de desejo seja tão inusitado
quanto a tediosa relação a dois, estável, a rotina do lar. No fundo, ela padece
do sonho de Emma Bovary, que credita à relação a dois, os louros de uma paixão
efêmera, crendo de boa fé, que a veneração de um homem possa se estender pelos
anos a fio de uma formação consolidada.
E nesse ponto, vale descartar as
interpretações vulgares a que o moralismo impulsiona. Emma Bovary, por exemplo,
não sofreu tudo o que sofreu e teve um desfecho trágico porque tenha adulterado; mas porque ela é humana. E como humana, sua condição existencial não lhe
oferece nenhuma alternativa que não seja o tédio como conseqüência inequívoca da
euforia. São raros os casos que conseguimos mitigar esse efeito. E Flaubert,
como realista que era, não se ateve em exceções e buscou a regra.
Da mesma forma, a personagem feminina
de Wim Wenders, assim como Emma de Flaubert, fala a partir de dentro de uma perspectiva
liberta da moral tradicional (no primeiro caso, pela adoção do amor livre, no
segundo pela experiência do adultério).
Na verdade, essa personagem humana e
complexa, evidencia nossa natureza mais comum: a de não estar satisfeito com o
que se tem e com o que se é; sempre flertando com o que nos é distinto,
diferente. E mesmo uma vida profundamente vivida e aberta, anseia pela
“normalidade” tediosa.
Pontos interessantíssimos foram
revelados por essa mulher de espírito livre, mostrando quase uma adesão atávica
a modos de vida arcaicos. A vaidade feminina e o desejo de se sentir protegida,
acolhida, prestigiada, venerada lhe infundem um profundo anseio por se submeter
ao homem para ser por ele elevada a um pretenso pedestal idealizado – o que eu chamo psicologicamente
de núcleo do sentimento monogâmico feminino. É o fundamento pelo qual muitas
mulheres se permitem ser iludidas pela cultura tradicionalista.
Por um impulso atávico, a mulher,
mesmo a de espírito livre, deseja ocultamente experimentar o sentimento de ser
elevada à condição de “rainha de um homem só”. Todavia, por conta desse
impulso, comumente acaba sendo atirada a um modelo de relação que apenas a
objetifica, e a sujeita a uma monogamia, que na esmagadora maioria das vezes, convenhamos,
termina sendo unilateral. Quando não, definha no mais absoluto tédio – algo bem
distinto do que fora inicialmente projetado pelo romantismo. O que era
proteção, muito rapidamente se converte em aprisionamento. E a rotina oferece
um esvaziamento natural do sentido de veneração, que geralmente é mantido pelas
amantes e não pela esposa, tal qual nos mostra Chico Buarque na bela canção “A
história de Lily Braun”.
Então, seria o adultério de Emma ou o
amor livre da personagem feminina de Wim Wenders uma solução para escapar dessa
relação objetificadora? É nesse ponto que entra a sobriedade desses autores
(faço alusão à Flaubert na literatura e à Wenders no cinema). O que eles nos
expõem de forma muito graciosa e irônica é que, para a esmagadora maioria das
pessoas, não existem soluções, mas tão somente, mudança de problemas.
Os problemas da mulher livre são
outros, distintos da mulher modulada pela tradição. No fundo, essa visão
sóbria, que muitas vezes é propositadamente distorcida, como se fosse uma tragédia
de cunho moral, também é verificada na belíssima canção de João Bosco “A nivel
de...”, em que a proposta de troca de casal, invertendo os gêneros e
formando-se um novo par homoafetivo, não resultou em nenhum milagre como
esperado, mas em mudanças de problemas. Assim ele termina a canção: “E o
relacionamento continua a mesma bosta”.
São todos exemplos dessa visão que é livre e ao mesmo tempo sóbria; sem grandes euforias pela liberdade que desfruta, porque sabe no intimo que a liberdade é limitada, e que as dores e os problemas sempre vêm e reaparecem em novas formas. São visões que não exortam modelos, não apontam soluções, não proclamam formulas milagrosas de como ser feliz. E por isso mesmo, costumam ser mal compreendidas, e por vezes, confundidas, como se fossem uma crítica à liberdade moral. Portanto, são obras que somente podem ser apreciadas em suas nuances mais profundas por pessoas de espírito livre. As demais, pouco ou mesmo nada recebem de obras assim. Ao contrário, elas podem ter seus preconceitos reforçados. Eis o risco que todo artista grande corre ao produzir obras de profundidade intelectual.
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